terça-feira, 27 de maio de 2008

Distorções

Audácia, pragmatismo, mistério. Racionalidade, impulsividade, sensibilidade. Simplicidade, complexidade, alguém em constante mutação.

Vamos escolhendo, peça a peça, a imagem que desejamos, e tentando nos encaixar. Algumas peças servem, outras não, mas tentamos mesmo assim, e insistimos.

Insistimos tanto que acabamos acreditando que elas pertencem a esse quebra-cabeça infinito de peçinhas minúsculas e únicas, que se combinam em encaixes tão diferentes e específicos, tão mais complexos do que imaginamos. Ficamos satisfeitos em nos ver de tal forma, mesmo que esta não corresponda à realidade.  
                                                                                                  
       
Somos todos simulações nascidas em mentes viciadas na atribuição de sentidos?

domingo, 25 de maio de 2008

Vinho e batidas (de carro)


Nesse domingo preguiçoso, estou escutando compulsivamente "Lilac Wine", do Jeff Buckley. É uma canção febril, inundada por embriaguez, melancolia e doçura, assim como a voz do cantor, que só descobri há pouco mais de um ano (infelizmente, bem depois de sua morte precoce, em 1997). A música compara o torpor trazido pelo álcool ao do amor e também fala da tentativa inútil de dissipar o sofrimento de um amor perdido à base de álcool. "Listen to me…I cannot see clearly. Isn't that she coming to me nearly here?", canta a voz melodiosa. O tal vinho lilás do título, ao mesmo tempo que inebria, apenas concentra o sentimento do qual se tenta se livrar.  

Hoje finalmente assisti a "Crash-Estranhos Prazeres", do David Cronenberg, que ganhei de um amigo que estava se desfazendo dos agora jurássicos VHS. Basicamente, os personagens do filme ficam excitados com acidentes de carro, com a sensação de estar no limite entre a vida e a morte. Ou seja, o perigo é um vício e uma alternativa para intensificar as sensações, numa sociedade em que tudo é banalidade e se torna imediatamente entediante.

O vinho e as situações de risco simbolizam aquilo a que nos apegamos para evitar a mediocridade, a sensação de que somos absolutamente iguais a todo o restante. São afirmações de que cada indivíduo passa por situações únicas e que só podem ser plenamente compreendidas por ele ou talvez vagamente por um grupo seleto que compartilhe de experiências semelhantes. De que existe um abismo entre o eu e o mundo. E que, algumas vezes, é fundamental conscientizar-se disso para compreender a sua própria identidade.
  
                                                                                    

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Um "road movie" nada árido

Qual a melhor solução para aliviar a mágoa de um coração partido? Para Wong Kar Wai, em sua primeira produção em língua inglesa, a resposta certamente seria um pedaço de torta de blueberry. Em "Um Beijo Roubado" (na brega tradução de "My Blueberry Nights"), o diretor conta a história de Lizzie (Norah Jones), uma jovem que é abandonada pelo namorado e se aproxima de Jeremy (Jude Law), dono do bar que seu ex freqüentava assiduamente. No bar, a única torta que geralmente chega intacta ao final do dia é a de blueberry porque, por algum motivo, ninguém a quer. Ao escutar de Jeremy a curiosidade, Lizzie se identifica imediatamente com o quitute preterido por todos.
É notável o esforço do diretor, dos figurinistas e dos cabeleireiros para fazer com que Jude Law não pareça o inglês aristocraticamente elegante e blasé como de costume, mas um autêntico dono de bar nova-iorquino. O ator surge, então, com cabelos desgrenhados, barba mal-feita e roupas largas, mas ainda é possível enxergar Alfie (de "Alfie, o Sedutor") e Dan (de "Closer") por trás da tentativa de criar uma aparência desleixada. Ele, assim como Lizzie, também chegou àquele bar depois de ver seus planos de futuro irem por água abaixo. Seu personagem, entretanto, é uma escada para Norah Jones.
Nessa primeira parte do filme, em que a protagonista está sofrendo por ter sido trocada por outra, percebe-se que Norah, em sua primeira incursão como atriz, não impressiona. Mesmo assim, ela se sai razoavelmente bem e consegue transmitir a delicadeza da personagem. Esta chora, se descabela, bebe ao ponto de dormir com a cabeça no balcão do bar, come descontroladamente, passa a ter insônia e leva até um soco em um assalto no metrô, num círculo auto-destrutivo. Lizzie, apesar de se identificar com Jeremy, mas ainda se sentindo desorientada pelo fim do namoro, decide viajar pelos Estados Unidos para se afastar de tudo que lembre seu amor frustrado.
Na sua fuga (ou tentativa de reencontrar um sentido para a sua vida), ela vai conhecendo a história de personagens tão sem rumo quanto ela, como um policial alcóolatra, a ex-mulher do mesmo e uma jovem viciada em jogos. Rachel Weisz, Natalie Portman e até a cantora Cat Power (fazendo uma ponta como ex-namorada de Jeremy) aparecem no longa, todas como mulheres que estão seguindo para algum lugar indefinido, sem objetivos evidentes.
Wong Kar Wai valoriza cores fortes, o que pode ser notado nos figurinos, cenários e na iluminação. Além disso, a
alternância de perspectivas e velocidades narrativas é cara ao diretor, que tenta evitar os clichês da visão de um estrangeiro sobre a sociedade, os costumes e os aspectos visuais dos Estados Unidos.
A trilha sonora, cheia de canções melancólicas em vozes roucas (como as das próprias Norah Jones e Cat Power), é um deleite à parte nesse filme delicado que trata da superação do sofrimento amoroso como um período de introspecção, observação do mundo exterior e, finalmente, recuperação. Ah, sim, e também de desejo incontrolável por doces.

terça-feira, 13 de maio de 2008

De volta ao princípio


Um amigo me emprestou "As estrelas-Mito e sedução no cinema", do Edgar Morin, há algumas semanas. Ainda não o li, mas olho pra ele todos os dias (deixei-o bem ao lado do monitor do PC, pra não esquecer de pegá-lo assim que sobrar um tempinho). Olhando hoje para a capa, lembrei das muitas análises que fazemos sobre o cinema.
Não estou me referindo só a aspectos "teóricos" (imaginário, características sociais, posicionamentos políticos etc), mas também aos dados técnicos, como figurino, fotografia, roteiro e montagem. Eu mesma acho interessantíssimo observar um filme de maneira mais aprofundada e perceber aspectos não-óbvios.
Apesar disso, acho que parte da magia se perde, do interesse inocente e genuíno, da atenção despreocupada e, por que não, infantil. Minha mãe conta que me levou pela primeira vez ao cinema quando eu tinha uns 3 anos, para assistir a uma animação em que objetos iam se transformando sucessivamente. Ela conta que eu acabei com a paciência de todos os outros espectadores (não acho que o filme fosse dedicado especificamente ao público infantil) porque, extasiada, ficava dizendo "olha, mamãe, a árvore virou um passarinho, agora um avião, agora um peixe...".
Ainda lembro vagamente (socorro, estou ficando senil) de como era assistir a um filme e literalmente esquecer do resto do mundo, porque naquele momento, só importava a história da Cinderela e de como ela iria mostrar ao príncipe que era a legítima dona do outro sapatinho de cristal. Sem teorizar, relacionar, refletir, apenas me deixando absorver pelo filme.
Era bom pensar que a vida tinha um sentido lógico, os bons eram recompensados e os maus punidos, que os casais apaixonados viveriam felizes para sempre, que as diferenças não eram nada frente a sentimentos verdadeiros. E só.
Pensando a respeito, lembrei de "Cinema Paradiso", a que assisti no ano passado. O filme conta de uma maneira muito delicada e lírica sobre um menino (Totó) que se encanta com o cinema ao se tornar amigo de Alfredo, projecionista da única sala de exibição da cidade. Depois de ter se tornado adulto e diretor de cinema, Salvatore (Totó) volta à cidade natal, que não visitava há anos, quando sua mãe liga para avisar sobre a morte de Alfredo. A seqüência final (inesquecível) mostra a fusão entre adulto e criança, entre racionalidade e emoção, entre consciência e encantamento frente ao cinema.
Hoje não consigo mais alcançar essa sensação, já começo a assistir a um filme pensando " o figurino é uma referência ao filme tal", "esse perfil de personagem é recorrente na obra do diretor X" ou "por que essa ou aquela prática é sempre mostrada de forma negativa ou positiva?". Sei que minha bagagem cultural e maturidade são diferenciais importantes, mas sinto falta de me deixar envolver pelo cinema como uma criança de novo.
Às vezes vejo essas saudades como crises sem sentido de nostalgia que vêm chegando na pontinha dos pés até se unirem com tantas outras e me tomarem por inteiro em forma de melancolia. Às vezes, como wake-up-calls sobre sensações das quais fui me esquecendo com o tempo, mas que ainda posso reaver. Ainda não sei se consigo ver novamente o cinema com os olhos fixos e brilhantes de Totó, mas continuo chorando no final de "Uma Linda Mulher", não dormindo à noite com medo da Samara e rindo das trapalhadas do Chaplin. Deve ser um bom sinal.


sexta-feira, 2 de maio de 2008

Painéis sonoros


Nas aulas de Teoria da Comunicação, a gente sempre escuta muito sobre o poder da imagem, a revolução da TV, a onipresença visual no mundo contemporâneo etc etc etc, mas o que pouco se percebe é a influência do som nas nossas vidas, mais especificamente da música.
Ela é pano de fundo de momentos felizes ou tristes, inspiração, muitas vezes diz o que não conseguimos verbalizar, provoca epifania e catarse, reflete aspectos e tendências da sociedade. Que discurso traduziria de forma mais intensa a revolta e a angústia de viver numa ditadura como "Cálice", nas vozes de Chico Buarque e Milton Nascimento?
Não podemos nos enganar pensando que apenas a composição, a letra e os arranjos formam a música, esquecendo de uma peça central: o intérprete. Se não fosse pela voz rouca, suja e irada de Kurt Cobain, "Smells Like Teen Spirit" não seria o hino que se tornou.
E as mensagens supostamente ocultas? Tem gente que jura de pé junto que "Hotel California" fala do inferno, "The Dark Side of the Moon" foi gravado como trilha alternativa para "O Mágico de Oz" e "Uva de Caminhão" (cantada por Carmen Miranda) é sobre o aborto.
Teorias à parte, que satisfação é extrair significado de uma música, pensar que se foi agraciado com uma conexão direta com a mente do artista. Se bem que também é interessantíssimo se deparar com uma música enigmática, que parece indecifrável.
Ou quando o som traduz o que se passaria horas sem fim tentando dizer sem conseguir com exatidão. Em um certo período de fossa, ouvir Roberta Sá cantando"Valsa da Solidão" me confortou porque, mesmo sofrendo, havia alguém que entendia perfeitamente o que eu sentia. "Primeiro Andar", do Los Hermanos, marcou a percepção de que eu havia me tornado adulta e que só eu poderia me responsabilizar pelos meus passos.
O sentido não está presente apenas nas músicas cantadas: as que são apenas instrumentais podem ser menos claras e mais polissêmicas, mas ainda mais incisivas. A trilha sonora de "Mar Adentro", cheia de canções instrumentais, reflete o desejo triste de uma liberdade que parece inviável. O que Chopin queria dizer com o seu Noturno op. 9 no. 2?